sábado, 28 de maio de 2011

A destruidora de lares

Quem olha para aquela loira redondinha, que mal chega a ter um metro e meio de altura, não consegue imaginar do quê ela é capaz. Eu mesma, se a visse de passagem pela rua, apostaria que se trata apenas de mais uma pacata mãe de família. Uma pré-quarentona simpática e falante, como tantas e tantas outras que a gente encontra por aí. Na verdade, só descobri tudo sobre ela porque, há alguns anos, a talzinha dá expediente lá em casa. Ou no que restou dela. 

Chegou com as melhores referências, para fazer faxina uma vez por semana. Logo me convenceu de que, se viesse dois dias, deixaria a roupa em ordem também. Daí a se transformar em mensalista foi um pulo. E foi nesse pulo que a minha vida se transformou em uma sucessão de surpresas. Surpresas essas que só não são maiores e mais desagradáveis porque o expediente é de meio período, já que na minha casa não existem objetos quebráveis o bastante para preencher um dia inteiro. 

Tudo começou com o mistério das bolinhas. Sim, era só eu vestir uma roupa linda e bem passada para perceber que ela fora irremediavelmente decorada com pequenos círculos brancos e amarelos, dos mais diferentes diâmetros. Falei, ensinei, bronqueei, ameacei. Nada adiantou. Nem cortar a água sanitária da lista do supermercado adiantou, porque ela tinha a bárbara coragem de comprar por conta própria ou até de trazer de casa. Não me lembro direito o que foi que eu disse no dia em que descobri isso, mas fez efeito: nunca mais encontrei bolinhas novas. Em compensação, foi aí que a loira baixinha voltou sua atenção para os meus móveis. 

Com a desculpa de limpar chão e paredes, ela tira tudo do lugar. E quando coloca de novo, deixa as coisas do jeito que bem entender. E eu, como geralmente entro em casa sem acender as luzes, vou colecionando trombadas, topadas, arranhões e hematomas até conseguir encontrar um interruptor. O que, diga-se de passagem, deixou de ser tarefa simples desde que a minha Maria Armentano se especializou em colocar estantes, armários, guarda-louças ou qualquer coisa bem grande no meio do caminho entre eu e eles. Tenho falado, ensinado, bronqueado e ameaçado, mas até hoje não consegui solução satisfatória para a questão. 

E não pense que quando não é dia de limpeza tudo fica sossegado, porque aquela coisinha redonda já conseguiu derrubar um trilho de cortina que estava instalado a quase três metros de altura, já conseguiu partir um cano de torneira dentro da parede, já conseguiu quebrar quase todos os meus copos de uma só vez e já conseguiu dobrar os pés da tábua de passar roupa de forma inexplicável, dentre outras coisinhas igualmente improváveis. E, por falar em passar roupa, vira e mexe encontro o ferro totalmente separado do fio. Mando consertar, mas eles se separam. Compro um ferro novo e eles se separam. Compro outro ferro novo e eles se separam outra vez. Meus ferros de passar estão ficando cada vez mais baratos e mais pesados. Só não arrumo um a carvão porque tenho medo de que ela ponha fogo na casa. Isso sem falar nas molduras de quadros, nos porta-retratos e nas mangueiras de jardim, objetos esses que ela economiza para ir desmontando aos poucos. 

Até o ano passado eu tinha carpete na casa inteira e assistia a uma guerra sem fim contra o aspirador de pó. Imaginei que arrancar o carpete resolveria o problema, mas acabo de descobrir que a violência ao varrer e passar pano já fez suas primeiras vítimas lá em casa: alguns tacos recém-restaurados, dois vasos de cerâmica e um pé de mesa que teria se agarrado ao rodo de forma tão apaixonada, que acabou levando o grande tampo de vidro a se espatifar no chão. 

E aí você me pergunta por que cargas d'água eu deixo que essa destruidora de lares continue a agir livremente no meu. E eu te respondo: ela é absolutamente honesta, muito bem humorada e, acima de tudo, passa bem longe dos meus livros. Se não fosse assim, há muito já teria descoberto o que é a fúria de uma mulher traída. 



* Roseli Pereira (quarenta e uns) é paulista, redatora publicitária e corinthiana (nesta ordem). Escreve desde sempre, mas só começou a desengavetar seus textos no dia em que descobriu a Internet. Dali em diante, foi ficando cada vez mais cara de pau e ganhou o papel. Atualmente, tem crônicas publicadas em 3 das 4 antologias dos Anjos de Prata e em alguns jornais do interior do Estado de São Paulo. 


(Copiado e colado, ipsis litteris de http://www.wooz.org.br/culturaroseli33.htm)

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