sábado, 4 de dezembro de 2010

Não há silêncio que não termine-Ingrid Betancourt


Memórias de uma descida ao inferno
Andreia Santana
Não há silêncio que não termine é um livro de cunho político, mas é também a catarse da dor de dezenas de seres humanos rebaixados a condição de pária. A obra de Ingrid Betancourt, ex-candidata à presidência colombiana sequestrada pelas Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) em 2002 e mantida em cativeiro até 2008, mescla narrativa em primeira e terceira pessoa com um ritmo ágil, como um thriller, a ponto do leitor (o menos preguiçoso) não sentir o peso das mais de 500 páginas. Traz ainda a angústia de uma mulher e de uma mãe privada da companhia dos filhos por longos anos. E a tristeza de uma filha que perdeu o pai, maior referência de sua vida.
Um mês depois do rapto, Ingrid ficou sabendo da morte de seu pai, o ex-embaixador da Unesco Gabriel Betancourt, porque ao receber comida de um guerrilheiro, ela estava embrulhada em um pedaço de jornal que narrava o cortejo fúnebre. Em 23 de fevereiro de 2002, em uma viagem durante a campanha presidencial, a então candidata foi raptada pelas Farc – um dos grupos mais famosos da guerrilha no país -, na estrada que conduzia até a cidade de San Vicente de Caguan. Estava sem escolta, porque no último minuto, ordens do governo colombiano confiscaram os soldados que iriam proteger a comitiva da candidata, sob alegação de que a área estava desmilitarizada e era segura.
Durante quase sete anos, até ser libertada em 2 de julho de 2008, Ingrid viveu prisioneira em um paraíso verde que ganhou contornos de uma das estações do inferno de Dante Alighieri (italiano renascentista, autor da Divina Comédia). Escondida em sucessivos acampamentos na selva amazônica, passou fome e frio; além de sofrer violência moral e física. Sua história é mais que conhecida, ela virou mito ainda em cativeiro. A foto que a mostrava debilitada e presa em um dos acampamentos, correu o globo e chamou a atenção da opinião pública mundial. Então, o livro não traz novidades quanto aos fatos, mas traz o testemunho de quem viveu o inferno na pele e a análise dos acontecimentos, sob a perspectiva da vítima.
Desabafo – Ingrid Betancourt precisa romper o silêncio, como o título da obra sugere, e expurgar toda a miséria que presenciou. Por ser uma pessoa de cultura refinada e com traquejo com as palavras, além de sólida formação filosófica e humanista, essa catarse é conduzida em uma narrativa magistral, que introduz o leitor na mata cerrada, entre os igarapés e os grandes rios da Amazônia colombiana. A selva de Ingrid dá medo na mesma proporção em que suas angústias comovem e revoltam.
Com grande lucidez, a autora elabora um dossiê com olhar crítico e humanístico sobre o fracasso do ideal revolucionário diante do jogo do poder. Revela ainda sua decepção com a condução do caso pelo governo de seu país, ressentindo-se do “abandono” legado aos reféns da guerrilha pelo presidente Uribe. Lembra porém, os presidentes franceses Chirac e Sarkozy; além do venezuelano Hugo Chávez, que tentou suscessivas negociações para a libertação dos reféns e conseguiu a soltura de Clara Rojas.
Quem espera uma descrição romântica da luta armada, pensando na figura de Che Guevara, por exemplo, se choca com a crueza com que a narradora disseca as Farc, uma associação descrita por ela como corrupta (associada e financiada pelo narcotráfico) e cruel. Mas, o livro passa muito longe de ser apenas o espelho de revolta de uma ex-prisioneira. Embora condene os atos de brutalidade praticados por muitos dos guerrilheiros que lhe serviram de carcereiros e mostre que o ideal socialista da revolução cedeu lugar a interesses bem capitalistas como roupas boas e aparelhos eletrônicos, a autora não deixa de se questionar sobre o que faria se fosse ela do lado oposto à mira do fuzil.
Também não nega que em meio ao contingente recrutado pelas Farc entre camponeses e miseráveis num país de grande injustiça social e corrupção do governo (com as oligarquias que se sucedem no poder), existam de fato aqueles que acreditam no poder da revolução. O problema é que a ideologia dos mais ingênuos (ou humanos) é manipulada habilmente por aqueles que cobiçam o poder pelo poder e não porque desejam repartí-lo com os mais pobres. Em nome de manter para si um padrão social semelhante ao da burguesia que diz combater, o alto comando da guerrilha afunda as bases do socialismo em um mar de sangue e relações excusas com o crime organizado, denuncia a autora.
Fé e filosofia - Reflexivo, o livro serve de autoanálise para uma mulher que encontrou na natureza selvagem da Amazônia uma prisão, mas também um santuário – tão assustador, silencioso e isolado quanto uma catedral – para se reconectar com Deus. Em alguns trechos, o misticismo da autora parece exagerado e exasperante (principalmente aos leitores mais pragmáticos). Mas quem pode saber como reagiria ao sofrimento enfrentado por ela? Na fé e nas longas reflexões filosóficas, Betancourt encontrou a serenidade necessária para não enlouquecer, mas sobretudo para não perder-se no labirinto criado pela guerrilha com o objetivo de quebrar a resistência moral dos prisioneiros.
Durante 2.323 dias, Ingrid Betancourt foi amarrada em troncos de árvores por correntes presas ao pescoço; se viu forçada a marchar debaixo de tempestades tropicais até os pés esfolarem; foi obrigada a fazer suas necessidades fisiológicas diante de homens que zombavam dela e não a chamavam pelo nome, mas apenas de cucha (velha) e que se referiam aos prisioneiros como pacote, encomenda ou a carga. “É um mecanismo de autodefesa dos guerrilheiros. Eles precisam nos destituir de humanidade, porque é mais fácil atirar numa carga do que em um ser humano. Matar um ser humano a sangue frio traz culpa”, escreve.
Em meio aos seus relatos, é impossível não sentir na carne, sobretudo se o leitor for mulher, quando ela nos descreve o constrangimento de tomar banho menstruada junto com os demais prisioneiros (homens e mulheres) e sempre sob a mira de uma arma.
A mesquinhez que a alma humana revela quando posta a prova e quando destituída dos seus confortos básicos (casa arrumada, roupas limpas, comida boa), também é tema recorrente ao longo do livro. Com lucidez, Ingrid expõe as próprias feridas e fraquezas e as dos companheiros de cativeiro, revelando as brigas infantis e desesperadas por comida ou por pedaços de plástico que serviriam de abrigo contra a chuva.
Mostra ainda as intrigas típicas do ambiente penitenciário, com as divisões entre preferidos e desafetos dos carcereiros e a arrogância despótica daqueles que caem nas graças dos comandantes. Por nunca ter abaixado a cabeça para a guerrilha, foi duramente criticada pelos companheiros de cárcere e chamada pedante. No entanto, pagou na carne, sofrendo torturas dignas da Inquisição, por cada ato de rebeldia que tinha o objetivo de manter sua integridade. Se recusava a virar “a carga” ou “o pacote”, embora tenha se sentido exatamente um nada, nas crises de depressão.
Julgamento moral - A autora julga a todos ao seu redor, sem pudores, mas principalmente, julga a si mesma num exercício de humildade quase inaciano. Ao longo das páginas do seu diário (versão moderna das Memórias do Cárcere de Graciliano Ramos ou da Memória da Casa dos Mortos, de Dostoiévski) é perceptível que ela carrega um forte sentimento de culpa, provavelmente fruto da formação cristã que recebeu e das diferenças de classe tão demarcadas pelas condições extremas de vida no seio da guerrilha. Mas também, fruto do choque em descobrir-se capaz de, nessas mesmas condições extremas, cometer os atos de barbárie que condena nos guerrilheiros.
E ainda, porque ao perder tudo e ser reduzida ao estado bruto e primitivo do ser humano, só via dois caminhos: o embrutecimento ou a redenção pela solidariedade. Ingrid Betancourt, ao que parece, escolheu o segundo caminho.
Em tempo: Uma produtora de cinema, a The Kennedy/Marshall, comprou os direitos autorais de Não há silêncio que não termine, cujo título foi retirado de um verso de Pablo Neruda (o poeta frequentava a casa de Gabriel Betancourt) e o roteiro do filme baseado nos relatos de Ingrid está sendo adaptado.

Publicado em  por Andreia Santana

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