sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Bagno: "Precisamos letrar os professores"

Entrevista concedida por  Marcos Bagno  ao Jornal do Commercio de Recife, em 25/4/10

JORNAL DO COMMERCIO – O que mais contribuiu para disseminar o preconceito linguístico no Brasil? A escola ou a mídia?
MARCOS BAGNO – Sem dúvida nenhuma, os principais veículos de difusão e perpetuação do preconceito linguístico são os meios de comunicação. Enquanto as diretrizes oficiais de ensino, em consonância com as pesquisas mais avançadas da linguística e da pedagogia, preconizam uma abordagem da língua mais democrática, mais respeitosa da diversidade linguística e social, os meios de comunicação, sempre muito vinculados às classes dominantes e a seus valores e ideologias, continuam apregoando um modelo de “correção” linguística que não corresponde sequer à prática dos nossos melhores escritores nos últimos cem anos, nem tampouco ao que é registrado nas boas gramáticas normativas e nos dicionários bem conceituados. Esses “comandos paragramaticais”, como eu os chamo, tentam impor um modelo de língua “certa” que é extremamente anacrônico, pré-modernista quase. Há portanto um divórcio entre o que se produz nas universidades, o que se propõe oficialmente como ensino de língua para as escolas e o que se estampa nos jornais, nas revistas, o que aparece na televisão, no rádio, na internet. Embora alguns meios de comunicação deem espaço a um discurso mais avançado sobre língua e linguagem, isso representa uma gota d’água num oceano de manifestações da mídia profundamente retrógradas no que diz respeito à língua e a seu ensino.
JC – No seu livro A norma oculta você afirma que não existe preconceito linguístico, na verdade o preconceito é social. Em que se baseia essa afirmação?
BAGNO – O preconceito linguístico é um disfarce amplamente aceito para que uma pessoa seja discriminada e excluída dos bens sociais aos quais teria direito pelo simples fato de ser um cidadão. Como existe uma crença generalizada de que existe uma única maneira “certa” de falar, de que as pessoas não escolarizadas falam “tudo errado”, essas alegações de base linguística servem como desculpa para que a pessoa seja discriminada, quando na verdade ela é discriminada porque é pobre, porque é negra, porque é mulher, porque vem de uma região geográfica desprestigiada, porque exerce uma profissão pouco valorizada. Muitas vezes um mesmo suposto “erro” é condenado quando é produzido por uma pessoa sem prestígio social e perdoado como “licença poética” por uma pessoa provinda das classes privilegiadas. As pesquisas mostram que as diferenças entre a fala de uma pessoa altamente letrada e a fala de uma pessoa analfabeta são mínimas, mas essas mínimas diferenças servem como razão suficiente para que a pessoa que já desprestigiada sofra ainda mais discriminação.
JC – Você enfrenta preconceitos por defender as variedades linguísticas? De onde vêm as críticas mais aguçadas?
BAGNO – Como a defesa da variação linguística é, antes de tudo, uma tomada de posição política, as principais críticas provêm dos setores mais reacionários, da direita brasileira, que hoje tem notórios representantes nos meios de comunicação. No entanto, recebo incomparavelmente mais apoio dos milhões de pessoas que em sua experiência de vida sofreram ou sofrem com o preconceito linguístico e encontram no que eu escrevo uma base teórica para defender seus direitos.
JC – O ensino de língua portuguesa na educação básica tem se adequado para ensinar o aluno a lidar com as diferenças linguísticas ou a gramática ainda é o centro das atenções nas escolas?
BAGNO – Apesar de todos os avanços das ciências da linguagem e da educação e da incorporação das propostas de ensino mais progressistas nas diretrizes oficiais, a prática de sala de aula ainda é muito conservadora, inspirada na crença falaciosa de que é preciso transmitir na íntegra toda a nomenclatura gramatical tradicional para ser decorada como um fim em si mesma, sem nenhuma demonstração da relevância desse aprendizado para a formação cultural do aprendiz. O grande problema está nos cursos de formação de professores, que se mantêm apegados a uma estrutura acadêmica rançosa, criada no século XIX, que não se adequou ainda ao mundo contemporâneo. Os cursos de Letras deveriam ser implodidos para, no lugar deles, serem criados novos cursos, mais sintonizados com o que deve de fato constar na formação de professores de língua neste século XXI.
JC – Haveria um modelo ideal de ensino de Língua Portuguesa?
BAGNO – O que eu defendo é o que vem sendo proposto por centenas de pessoas, há mais de 30 anos, no Brasil e no resto do mundo: as aulas de língua materna têm que se destinar, antes de mais nada, à inserção dos aprendizes na cultura letrada, e isso se faz por meio da leitura, da escrita, da leitura, da escrita e principalmente da leitura e da escrita. Enquanto nossos professores acharem que é preciso ensinar dígrafo, oxítonas, preposições, oração subordinada substantiva objetiva direta reduzida de infinitivo, epiceno e outras coisas cabalísticas desse tipo, nossa educação linguística continuará catastrófica como já está. Outro problema é que temos muitos e muitos professores incapazes de ensinar a ler e a escrever adequadamente porque eles mesmos não têm domínio suficiente da cultura letrada na qual deveriam inserir seus alunos. Temos, antes de tudo, que letrar os nossos professores.
JC – Essa história de que linguista defende que não há “certo” e “errado” em português é correta? Vale tudo no uso da língua?
BAGNO – Dizer que os linguistas são os apóstolos do “vale-tudo” é fruto ou da ignorância ou da má-fé. Nenhum linguista sensato jamais disse que não é preciso ensinar aos alunos as formas privilegiadas, normatizadas de uso da língua. O que dizemos é que essas não são as únicas formas válidas de uso da língua e que é preciso abordar em sala de aula a multiplicidade de usos idiomáticos que existe na sociedade. No entanto, como nossa sociedade só consegue pensar em termos de sim/não, preto/branco, certo/errado, um discurso que contemple a variação, a noção de pluralidade de falas, não consegue penetrar no senso comum.
JC – A discussão sobre variação linguística e preconceito linguístico está difundida na sociedade?
BAGNO – Bem menos do que seria desejável, bem menos do que a noção antiga e estúpida de que existe um modo “certo” de falar e que tudo o que difere dele é necessariamente errado. No entanto, como na formação dos professores nas boas universidades (apesar de nem sempre de modo adequado) a discussão sobre a variação linguística já se faz de maneira permanente, creio que em breve teremos algum reflexo desse debate também na sociedade. (A.T.)

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